Vigilância Panóptica
Por de trás de tudo está a figura do Panóptico, o ideal de prisão de Bentham que se baseia na arte da vigilância discreta, cujo princípio é impor uma forma particular de conduta.
“...o Panóptico... é o diagrama do mecanismo de poder reduzido à sua forma ideal; o seu funcionamento, abstraído de qualquer obstáculo ou resistência, representa a figura de tecnologia política que pode e deve ser desligada de qualquer uso específico” (Foucault, 1979).
Este diagrama abstracto é um modelo disciplinar de controlo que induz no indivíduo uma progressiva domesticação que interioriza a ideia que está a ser vigiado e comporta-se de uma forma tendencialmente mais normalizada. O observador detém o poder devido aos meios que lhe permitem exercer o poder de forma eficaz: o poder não como uma posse do observador mas poder como algo de relacional (Graça, 2004).
A Prisão
Em “Discipline and Punish”, Foucault estuda a reforma do sistema prisional em França, em finais do séc. 18, altura da revolução francesa e de afirmação de valores Humanistas.
A disciplina, segundo Foucault, não deve ser identificada com uma qualquer instituição em particular. O estudo da prisão é feito com o interesse prévio: Como a reclusão vem sendo adoptada como meio de punir infracções na sociedade; Como as formas de conhecimento estratégico se desenvolveram e racionalizaram este procedimento; Como o poder arbitrário do soberano deu lugar ao sistema penitenciário (Bogard, 1991).
Segundo Bogard, a questão de Foucault em torno da Prisão é essencialmente como o poder pode ser exercido e como a disciplina pode ser aceite como mecânica de controlo e que pode ser transversal a todas as instituições, ligando-as e fazendo-as funcionar de novas formas.
Para Foucault, a instituição da prisão corrige relações múltiplas de poder disciplinar e o mesmo pode ser dito de outras instituições como de educação, militares, religiosas ou económicas. Considerada de forma abstracta, a instituição da prisão não tem em Foucault um estatuto exemplar. Excepto pelo facto de que na prisão se observa métodos disciplinares concentrados na sua forma mais extrema, a prisão, como outra instituição, é um efeito de múltiplas relações de poder que são por si funções de forças históricas. O importante a considerar, para Foucault, não é a instituição mas o diagrama de poder, o conceito abstracto da máquina disciplinar Panóptica transversais àquelas instituições e que as faz mover (Bogard, 1991).
Bio-Poder e o controlo da população
O poder, na sua essência, é o poder sobre o corpo. O poder de disciplinar o corpo, domesticá-lo de acordo com as normas da sociedade. A evolução das práticas sociais pode ser explicada como a evolução das práticas de actuação sobre o corpo. (Graça, 2004)
Em “Discipline and Punish”, Foucault concentra-se numa fórmula abstracta de disciplina (“disciplinas”) de impor uma forma de conduta a indivíduos particulares detalhando exercícios de poder sobre um número limitado de corpos confinados a espaços relativamente pequenos. Mas num trabalho posterior, na “História da Sexualidade”, ele considera o controlo de massas distribuídas por espaços vastos, desde o controlo no domínio político e económico a “problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração”. Foucault descreve outra formula geral de dominação: big-power (Bogard, 1991).
Segundo Bogard, na leitura da obra de Foucault, Big-power refere-se a técnicas para controlo de populações inteiras cujo princípio é o “poder sobre a vida” na seguinte lógica: poder disciplinado - controlo sobre o corpo – controlo sobre o poder administrativo – controlo sobre a população viva.
"When the diagram of power abandons the model of sovereignty in favor of a disciplinary model, when it becomes the `big-power' or `big-politics' of population, controlling and administering life, it is indeed life that emerges as the new object of power" (Foucault, 1980 in Bogard, 1991).
Poder/Saber ou Discursos
Com a reforma Humanista começam a multiplicar-se as áreas do saber que progressivamente vão influenciar a cultura das pessoas nas sociedades. Com uma ênfase grande na noção de norma e na necessidade de produzir indivíduos normalizados, forma-se um corpo de saber nas mais variadas disciplinas da saúde, direito, psicologia, economia, etc. Em consequência, cada vez mais o indivíduo é influenciado pelos múltiplos discursos que o rodeiam.
O indivíduo vai interiorizando estes discursos que o rodeiam ao longo da vida e vai sendo moldado, domesticado por esses discursos.
Foucault, com esta teoria, conclui que o indivíduo é uma construção histórica resultante dos discursos que progressivamente vão dominando.
Foucault descreve discursos como vias de identificar a verdade e o conhecimento em momentos históricos específicos, e dessa forma fornecendo regras que definem realidades. Os discursos contêm poder porque estes estabelecem verdades e conhecimento particulares e o seu poder é exercido através da criação e sustentação de normas sociais, práticas e instituições. Para Foucault, a questão não é a origem dos discursos, mas as implicações dos seus efeitos de poder e os tipos de conhecimento que produzem e institucionalizam. Dado que os discursos geram poder, o poder não tem uma fonte única mas é heterogéneo e pluralístico, vindo de todo o lado e estando em todo o lado. A resistência a modos dominantes de poder desenvolve-se pela produção de novos discursos, que produzem novas verdades, são contra-discursos que se apropriam do espaço das verdades existentes para reclamarem legitimidade (Banerjee, 1995).
Nesta visão de Foucault, o poder e o saber estão interligados: poder é o outro lado do saber. Não é possível falar de poder sem falarmos nas dimensões do saber que estão na base do exercício desse poder (Graça, 2004).
Avaliação Crítica (*)
A obra de Foucault é polémica a avaliar pelas críticas a que tem sido sujeita como confirma Widder (2003): “Many criticisms of Foucault’s thought appear and reappear so frequently that they have become cliché …”.
Apenas como ilustração do comentário anterior, mas sem me identificar com a opinião, deixo um exemplo de uma das críticas severas a Foucault num artigo com o nome ‘Reading Foucault: Anti-Method and the Genealogy of Power-Knowledge’. Referindo o livro The Archaeology of Knowledge, Larry Shiner (1982) comenta: “Rather his work is without ground; it is ‘a discourse about discourses’, a ‘diagnosis’. Foucault seams to be saying: You think I am applying struturalist method? I’ll show you a method. And having shown us this ‘method’ without a starting point, he promptly goes off and forgets it. We see practically nothing of this ‘bizarre machinery’ of concepts in Foucault’s subsequent writings. Viewed in the perspective of the political orientation of this total project, The Archaeology of Knowledge becomes not merely a critique of the conventional history of ideas and a clever suggestion for its replacement by a diagnostics of discursive practices, but above all a parody of the search for method.”
Na minha opinião Shiner, um americano com marcas Funcionalistas que provavelmente procura fórmulas exactas, não entendeu bem a mensagem de Foucault.
Contudo, na minha opinião, algumas críticas podem ter mais consistência nomeadamente em dois pontos: primeiro, a sua análise descritiva do poder não nos fornecem qualquer critério para julgamento, nenhuma base sob a qual se condene alguns regimes de poder opressivos ou aplaudir outros que envolvam progresso na liberdade humana. Segundo, Foucault não oferece um ideal alternativo, nenhuma concepção de ser humano ou de sociedade humana, livre das amarras do poder (Patton, 1994). Talvez melhor compreender estas críticas, valha a pena referir que vêm de uma fonte da área da teoria política, a Political Theory Newsletter.
Sobre o primeiro ponto, também Nancy Fraser (1989, in Patton, 1994) argumenta sustentando esta crítica: "Because Foucault has no basis for distinguishing, for example, forms of power that involve domination from those that do not, he appears to endorse a one-sided, wholesale rejection of modernity as such ... Clearly, what Foucault needs, and needs desperately, are normative criteria for distinguishing acceptable from unacceptable forms of power".
Sobre o segundo ponto na crítica referida anteriormente, Jurgen Habermas (1990) acrescenta que é devido a não existir uma concepção de sujeito humano propriamente dito que Foucault “is left with only the arbitrary partisanship of a criticism that cannot account for its normative foundations”. Estas críticas acusam Foucault da inexistência de uma qualquer filosofia do sujeito na sua obra (Patton, 1994).
Outras críticas que se apontam a Foucault têm a ver com a aplicabilidade da perspectiva de poder Foucault na sociedade contemporânea. Por exemplo, Jean Baudrillard (1983, in Bogard) argumenta que as condições para o exercício do poder disciplinar, como Foucault o concebe, já não existem em sociedades tecnicamente avançadas baseadas em tecnologias da informação.
Infelizmente, Foucault tem sido mal interpretado. Como o próprio explica:
“I would like to say, first of all, what has been the goal of my work during the last twenty years. It has not been to analyze the phenomena of power, nor to elaborate the foundations of such an analysis. My objective, instead, has been to create a history of the different modes by which, in our culture, human beings are made subjects.” (Foucault, 1981)
A análise de poder na obra de Foucault, na possibilidade de estendermos para a actualidade os seus conceitos, é útil para compreender os mecanismos da vida actual que governam o nosso corpo.
O conceito de poder sobre o corpo adequa-se à ordem da sociedade capitalista actual, que exige que o poder não seja usado para tirar a vida ou destruir o corpo mas geri-lo, torná-lo útil e produtivo sem desperdício. As técnicas de disciplina e poder que tornam isto possível transformaram-se com os tempos de altamente visíveis a altamente invisíveis.
As tecnologias modernas de poder que produzem sujeitos auto-regulados são mais eficientes mas contudo, não menos dominantes que as técnicas de intervenção directa sobre o corpo usadas no passado. Foucault sugere que vivemos na “carceral city” pois ninguém escapa das matrizes de relações de poder que constituem a nossa experiência na vida diária. (Donath, 1997).
A perspectiva de poder de Foucault parece-me bastante útil na compreensão do indivíduo no tecido social actual, contudo, na minha opinião, já não deverá ser tão adequada para compreender as organizações por achar que tal análise constitui uso impróprio de material desenvolvido para compreender “ how human beings are made subjects”.
Notas
(*) Devo dizer que o meu estudo da obra de Foucault foi baseada em fontes secundárias. Não li a obra em fonte primária mas apenas a sua interpretação em material académico identificado nas referências. Este facto exclui a possibilidade de comentar, pelo menos negativamente, de forma original. Assim a orientação desta análise crítica é fundamentalmente baseada na opinião de terceiros.
Referências
Graça, Manuel (2004), Notas retiradas das aulas de Fundamentos de Gestão, do Mestrado em Gestão de informação, FEUP
Widder, Nathan (2003) Foucault and Power Revisited, University of Exeter, Department of Politics, UK, presented at Political Studies Association Conference Proceedings 2003, Leicester, [URL: , visited on 6/Abr/2004]
Foucault, Michel (1981), Questions of method: an interview with Michel Foucault, Ideology and consciousness 8 , p.208
Callero, Peter L. (2003) The Sociology of the self. Annual Review of Sociology, Vol. 29 Issue 1, p115, 19p; (Academic Search Premier: AN 10878539)
Racevskis, Karlis (1993) Interpreting Foucault. Papers on Language & Literature, Winter93, Vol. 29 Issue 1, p96, 15p; (Academic Search Premier: AN 9511063117)
Digeser, Peter (1992) The fourth face of power. Journal of Politics, Nov92, Vol. 54 Issue 4, p977, 31p; (Academic Search Premier: AN 9301031713)
Isenberg, Bo (1991) Habermas on Foucault. Critical Remarks. Acta Sociologica (Taylor & Francis Ltd), Vol. 34 Issue 4, p299, 10p; (Academic Search Premier: AN 6252349)
Shiner, Larry (1982) Reading Foucault: Anti-Method and the Genealogy Of Power-Knowledge.. History & Theory, Vol. 21 Issue 3, p382, 17p; (Academic Search Premier: AN 4890251)
Wandel, Torbjörn (2001) The Power of Discourse: Michel Foucault and Critical Theory. Cultural Values, Jul2001, Vol. 5 Issue 3, p368, 15p; (Academic Search Premier: AN 5407492)
Banerjee, Sarmistha (1995) Alienation, Power and Gender in Sociological Theory: A study of Marx, Foucault and Feminism, MSc Thesis Master of Arts, Northern Illinois University
Allen, Amy (2003) Power, Subjectivity, and Agency: Between Arendt and Foucault. International Journal of Philosophical Studies, May2003, Vol. 10 Issue 2, p131, 19p; DOI: 10.1080/09672550210121432; (Academic Search Premier: AN 6911800)
Bogard, William (1991) Discipline and deterrence: Rethinking Foucault on the question of power in contemporary society. Social Science Journal, 1991, Vol. 28 Issue 3, p325, 22p; (Academic Search Premier: AN 9609036763)
Baudrillard, Jean (1983) The Precession of Simulacra, in Simulations (New York: Semiotexte).
Patton, Paul (1994), Foucault's Subject of Power, Political Theory Newsletter, Volume 6, No. 1, May, pp.60-71. [URL: http://lists.village.virginia.edu/listservs/spoons/foucault.archive/papers/patton, visited 2/Abr/2004]
Fraser, Nancy (1989) Foucault on Modern Power: Empirical Insights and Normative Confusions, in Unruly Practices, Minneapolis: University of Minnesota Press, pp.32-33.
Habermas, Jurgen, (1990) The Philosophical Discourse of Modernity,
translated by Fredrick G. Lawrence, Cambridge, Massachusetts: MIT Press, p.276.
Donath, Judith S. (1997), Inhabiting the virtual city: The design of social environments for electronic communities, PhD Thesis, Media Arts and Sciences, Massachusetts Institute of Technology [URL: , visited 8/Abr/2004]