Culpa e prazer: imagens

do consumo na cultura de massa

Everardo Rocha

 RESUMO

O objetivo deste artigo é estudar algumas das principais representações do consumo no senso comum e na cultura de massa. Essas representações tendem a classificar o consumo como algo hedonista, ou exercer sobre ele um discurso moralista, ou vê-lo como algo natural ou, ainda, como utilitário. Ao estudar as implicações ideológicas dessas visões,  este artigo pretende contribuir para o estudo do consumo como um sistema cultural central na sociedade moderno-contemporânea.

Palavras-chave: Cultura e consumo; cultura de massa e ideologia; Teoria da comunicação; Antropologia do consumo.

Este artigo tem por objetivo analisar alguns aspectos do complexo fenômeno a que chamamos consumo. Mais precisamente quero apontar aqui alguns significados que o termo consumo assume no senso comum, em certos campos do saber e na cultura de massa. Acredito que entender os múltiplos significados atribuídos ao consumo nesses discursos é um bom ponto de partida para investigar a presença deste fenômeno na experiência contemporânea. Vou tentar fazer uma espécie de inventário das principais utilizações do termo como forma de explicitar seus significados, o que eles revelam e, principalmente, o que escondem.

Falar do consumo, dos seus significados públicos e de como esse fenômeno atravessa a experiência contemporânea envolve, com certeza, questões complexas e uma pesquisa mais ampla que foge aos limites deste trabalho. Por isso, o espírito deste texto é ser uma exploração; algo que experimenta possibilidades, testa o limite das idéias, abre questões para uma troca intelectual. Na verdade, quero contribuir para o desenvolvimento de um debate mais profundo sobre o consumo, pois acredito que, com seu estudo sistemático, poderemos conhecer um sistema cultural importantíssimo e um dos fenômenos mais marcantes na vida social do nosso tempo.

O consumo possui uma óbvia presença - tanto ideológica quanto prática - no mundo em que vivemos, pois é um fato social que atravessa a cena contemporânea de forma inapelável. Ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso imaginário. O consumo assume lugar prirnordial  como estruturador dos valores e práticas que regulam relações sociais,  que constroem identidades e definem mapas culturais. Também, como é próprio de fenômenos deste porte, demanda, insistentemente, reflexões, interpretações e teorias. Assim, minha intenção ao pesquisar o consumo é indicar certas pistas para uma leitura de sua lógica cultural como via de acesso ao imaginário contemporâneo e, em particular, aquele que se localiza na chamada cultura de massa.

Quero começar assinalando um paradoxo revelador em relação ao consumo. Como pode um fenõmeno essencial na experiência da sociedade modemo-contemporânea não ser objeto de uma pesquisa sistemática, por parte das ciências sociais, que procure investigar a complexidade nele envolvida? A pouca pesquisa existente, este silêncio (ou quase) em torno do tema, a timidez para falar dele, é significativo, tornando fundamental romper, superar o paradoxo e contribuir para uma reflexão consistente sobre o consumo. Este texto deve ser visto como parte deste projeto. Mas quais seriam as razões do silêncio? Penso que uma delas está no fato de que gravitam ao redor do consumo ideologias que congestionam, obliteram, obscurecem a reflexão. É como se o consumo, por ser algo que todos, de alguma forma, experimentam, acabasse por ser objeto de opiniões, emoções, julgamentos e críticas em relação às quais se pode dizer, no mínimo, que são apressadas.

Na verdade, esse tipo de problema não é novo. Freud fazia referência a ele quando dizia que uma grande dificuldade para a construção da teoria psicanalítica se devia ao fato de que todos possuímos processos psicológicos e que, portanto, todos, de alguma forma, achamos que sabemos sobre o psiquismo. O mesmo se aplica à noção de cultura, e vários antropólogos já se referiram a isto: a experiência da cultura compartilhada por todos nós é bem diferente de uma teoria da cultura. Umberto Eco também, no próprio prefácio do seu clássico estudo Apocalípticos e integrados, já havia apontado algo semelhante sobre a idéia de indústria cultural ao fazer referência ao fato de que essa expressão se encontrava congestionada. Tudo isso indica que as visões de senso comum - emocionais e ideológicas -, ao congestionarem um tema, mais dificultam que auxiliam na construção de teorias com o rigor que se deseja para a elaboração de um pensamento consistente, ou, se quisermos, mais próximo da prática científica.

Para avançar na pesquisa do consumo, é preciso tentar decifrar esse quadro e aprofundar um pouco essa complicada discussão, procedendo no estilo do investigador que quer recuperar, por meio de restos, fragmentos e vestígios de idéias dispersas, um quadro maior. Assim, agindo como quem monta um quebra-cabeça e deseja ver surgir uma figura, podemos indicar algumas das principais representações pelas quais se concebe e se experimenta o consumo. Em uma primeira observação, penso que são utilizados quatro grandes significados para o termo consumo na mídia, em certos saberes e no senso comum. Em outras palavras, podemos dizer que ele é enquadrado em quatro grandes compartimentos ideológicos. É claro que as utilizações corriqueiras do termo consumo, as suas consequências e os enquadramentos ideológicos que daí derivam são algo complexo, que demanda um estudo profundo. Entretanto, apenas como pretexto para o debate, vale a pena conhecer os principais significados que atravessam o discurso sobre o consumo.

Join now!

Assim, quando se fala em consumo nas mais diversas instâncias, o discurso proferido tende a classificá-lo em uma dentre quatro possibilidades. É como se o consumo fosse marcado ou explicado sempre com base nessas marcas, perspectivas ou visões. Gostaria de chamá-las de hedonista, moralista, naturalista e utilitária. Elas podem às vezes aparecer sozinhas ou combinadas de diversas maneiras, não se excluem mutuamente e podem se alternar no discurso. Ou seja: o consumo pode ser visto como algo que se explica com base em qualquer uma das quatro, ou também por algumas delas articuladas, ou por todas conjuntamente. O que pretendo ...

This is a preview of the whole essay