No princípio do romance, o rio é símbolo de liberdade e mudança. Huck e Jim seguem o curso do rio e nunca ficam demasiado tempo num lugar para não se terem que subjugar a nenhumas regras. Comparada com as cidades “civilizadas” ao longo das margens do Mississipi, a jangada representa um espaço tranquilo alternativo,onde eles podem disfrutar da companhia um do outro e render-se às coisas mais simples, como fumar cachimbo e observar as estrelas.
À medida que a história se desenrola, o mundo real rapidamente interfere no espaço calmo e protegido do rio. Huck e Jim encontram ladrões, artistas falsos, assaltantes. Apesar de o rio ainda lhes proporcionar o refúgio quandos as coisas em terra correm mal, a relaçao de ambos para com o rio começa a modificar-se e a tornar-se menos amigável. Depois de terem falhado o lugar em que se teriam que desviar para o Ohio River, o Mississippi deixa de os conduzir à liberdade. Em vez disso, a corrente arrasta-os para o sul, que representa a derradeira ameaça para Jim e o beco sem saída para Huck.
A primeira referência directa ao rio tem lugar no segundo capítulo, antes de Tom e Huck se encontrarem com os outros rapazes para, assim,formarem o “Tom Sawyer’s Gang”. No topo da colina, Huck observa a paisagem e descreve o rio: “a whole mile abroad, and awful still and grand”. Também no princípio do romance, é no rio que Huck pensa que o pai morreu afogado(“about this time he was found in the river drownd”), apesar de ele reaparecer vivo e de aparecer, definitivamente, morto no rio, no capítulo nono.
No entanto, ainda antes deste capítulo, ocorrem factos importantes relacionados com o rio: as enchentes. Huck parece conhecer realmente bem o rio e, no capítulo 7, parece-me que ele está bem consciente daquilo que o rio lhe pode oferecer, incluindo um meio de fuga: “I judged I’de hide her (canoe) good, and then (...) when I run off, I’d go down the river”. Huck encontra no rio uma canoa à deriva, e é nela que a sua aventura vai começar. É, então, no capítulo nono, que as enchentes desvendam aos dois amigos coisas estranhas. Apesar de partilharem um cenário pastoral, idílico, este episódio da enchente relembra a Huck e Jim a ameaça permanente do mundo exterior e dá ao leitor a sensação de que esta fantasia na ilha não irá perdurar durante muito mais tempo. A casa que flutua no rio arrasta consigo também um homem que fora assassinado. Para além disso, a casa também contém outras marcas de vícios humanos: baralhos de cartas, garrafas de whisky, graffiti obsceno. Apesar de também encontrarem e levarem algumas coisas úteis ( “fishline;”old tin lantern”),isto lembra-lhes que a Jackson’s Island não é completamente isolada do mundo. O facto de Jim evitar que Huck veja o cadáver do homem assassinado, que é, de facto, o seu pai, faz-nos ver Jim como um adulto inteligente e carinhoso, que tenta proteger Huck.
Outro dos perigos do rio é o nevoeiro: “the night got gray and ruther thick, which is the next meanest thing to fog. You can’t tell the shape of the river and you can´t see no distance”. Por exemplo, no capítulo 16, o nevoeiro quase provoca a morte dos dois: “as Jim went overboard on one side and I on the other, she come smashing straight through the raft:” As tempestades também pairam sobre o rio e ameaçam perturbar a vida tranquila nas á guas. No capítulo 20, por exemplo, Huck e Jim têm que enfrentar a tempestade, enquanto que o “Duke” e o “King” se apoderaram das suas camas: “it come on to rain and blow and thunder and lighten like everything”.
O rio também é significativo na construção de Huck enquanto personagem, mas também enquanto ser humano. Foi no rio que ele aprendeu a tomar decisões inteligentes e a confiar no seu bom instinto, em virtude de toda uma série de tentações e más influências que encontrou e teve que ultrapassar. Foi no rio que Huck se descobriu a ele próprio. É nas margens desse rio, sempre que Huck se aventurava em terra, que a sua identidade será redefinida infindáveis vezes.
Com efeito, em terra, a narrativa centra-se nos papéis que a sociedade espera que Huck desempenhe e nos papéis de todos os outros que o rodeiam. A sua identidade é minada por sucessivos interrogatórios nas margens. A primeira vez que Huck sai do rio, no capítulo 11, encontra uma senhora “about forty year old”, Mrs. Judith Loftus. Huck veste roupas femininas e apresenta-se, como sendo Sarah Williams, habitante em Hookerville, cuja mãe se encontrava doente e ”ela” precisava de falar com o tio, Abner Moore. Mais tarde, a senhora da casa nota claramente que Huck não é uma rapariga, e Huck volta a contar uma história diferente. Desta vez, diz ser um “runaway ‘prentice”, de nome “George Peters”, filho de pai e mãe já falecidos e entregue por lei aos cuidados de um lavrador que o maltratava. Esta história que Huck contou como sendo dele tem muitas semelhanças com a história de Jim. Vindo de Huck, esta história causa pena a Mrs. Lotus, que faz, assim, uma clara distinção entre as condições de Huck, enquanto menino branco e Jim, enquanto negro . A senhora Judith, apesar de ser uma das pessoas mais sinceras que Huck encontra ao longo do rio, é uma pessoa ambígua. É uma pessoa caridosa e inteligente, no entanto, parece que ela e o marido só ficam satisfeitos tirando o proveito que lhes advirá em capturarem Jim. Tanto ela como a sociedade distinguem entre um escravo e um rapaz, ambos fugitivos, ambos abusados.
No capítulo 17, Huck e Jim são obrigados a ir para terra porque um barco a vapor colidiu com a canoa, quebrando-a. Aí encontra os Shepherdsons e o seu nome altera-se para George Jackson. E mais uma vez conta-lhes outra versão da história da sua vida: “pap and me and all the family was living on a little farm down at the bottom of Arkansaw, and my sister Mary Ann run off and got married and never was heard no more, and Tom and Mort died (…)”. Mais uma vez, Huck é submetido a um intenso interrogatório: “They all asked me questions”.
Dois capítulos a seguir, Huck encontra mais duas personagens caricatas, que se fazem passar por um duque e um delfim. Apesar de Huck não mudar o seu nome, a história que lhes conta é, mais uma vez, diferente, também para encobrir a identidade de Jim enquanto escravo foragido. Para isso, Huck diz que o Jim é um escravo mas que lhe pertence. Também neste diálogo, Huck refere que “They asked us considerable many questions” (capítulo 20). Este encontro relembra a Huck e Jim o seu poder relativo. Apesar de os dois homens serem criminosos, são homens livres, adultos, brancos, que têm o poder de denunciar os dois amigos.
No capítulo 24, quando tentam passar por familiares do falecido Mr. Wilks, Huck tem que se “mascarar” outra vez, fingindo ser o criado do duque. No entanto, apesar de conseguir desempenhar o seu papel, tem bastantes dificuldades face aos interrogatórios que lhe são feitos.
No trigésimo segundo capítulo, na quinta onde Jim se encontra aprisionado, as pessoas que encontram Huck identificam-no com o Tom Sawyer e ele não lhes revela a verdade porque “being Tom Sawyer was easy and confortable”. Só no Capítulo 42 é que a tia Polly desmascara os dois amigos, Tom e Huck, e a ambos são reatribuídas as suas verdadeiras identidades.
Como foi possível verificar, a vida em terra, com todo o diálogo, interrogatórios e a necessidade de criação de máscaras, opõe-se à vida no rio. Na canoa não há sons, não há diálogo, o tempo parece suspenso, os dias “slide along so quiet and smooth and lovely”. Esta representação da vida no rio é claramente romântica; no entanto, é temperada com o conhecimento realista de que, nem mesmo no rio, se pode ignorar e fugir aos problemas do mundo.
Passagens Importantes para a descrição do rio e para a descrição da relação de Huck com o rio:
“The river looked miles and miles across.” (capítulo 7)
“the river, big and dark and solid, like a steamboat without any lights” (capítulo 7)
“ The river was a mile wide there, and it always looks pretty on a summer morning.” (capítulo 8)
“drifting down the big, still river” (capítulo 12)
“It was a monstrous big river here, with the tallest and the thickest kind of timber on both banks; just a solid wall, as well as I could see by the stars.” (capítulo 15)
“ We said there wasn’t no home like a raft, after all. Other places do seem so cramped up and smothery, but a raft don’t. You fell might free and easy and comfortable on a raft:” (capítulo 18)
“It’s lovely to live on a raft.” (capítulo 19)
“ the raft was a most uncommon lively place, for there wasn’t nothing but sword fighting and rehearsing” (capítulo 21)
“ we went a-sliding down the river, and it did seem so good to be free again and all by ourselves on the big river, and nobody to bother us.” (capítulo 29)